CRÔNICA de Zé Beto Maciel.
Não.
Eu tenho que ficar quieto no meu canto. Se lembrar muito, eu choro. É
inapelável. O que fazer, então? Sempre as mesmas perguntas. E sempre
esta exaustiva apreensão. Um torpor. Hoje, mais uma vez, vi uma das
fotos de um lugar que povoou minha infância. Era da Igreja
Presbiteriana. Algo próximo, bem perto da minha casa. Todos os dias,
passava pela frente da igreja rumo ao açougue do Mallorquin, do
paraguaio, como falávamos. Um quilo de agulha ou paleta, carne com osso
para o almoço de segunda à sexta. Sábado, limpava a casa e domingo cedo,
ia comprar uma galinha viva no João Galinheiro, outro paraguaio, na
altura do Macaranã. As ruas, com exceção da Avenida Brasil, eram de
terra vermelha e o Arroio Monjolo serpenteava o centro. Tudo era uma
aventura.
ilha de Ipacaraí |
Minha casa na rua Bandeirantes,
depois Major Raul de Mattos – um militar morto no combate ao contrabando
nas barrancas do Rio Paraná – e finalmente Juscelino Kubistchek, ou JK.
Na quadra entre as ruas Rui Barbosa e Bartolomeu de Gusmão, poucos
resistiram até hoje.
Pioneiro: Lucio Alves pinto |
Minha mãe é um das últimas junto com a dona Vidalha
e seu Rolon. Seu Jorge e dona Negra, os Pilatti, seo João e dona Rosa,
dona Cecília, os Abatte Soley, dona Pichi, os Paganotto, os Pereira –
todos se foram. Não resta quase mais ninguém na minha rua que era
cortada por uma valetão que seguia até a Quintino Bocaiúva e desaguava
no Monjolo. Jacarés, saracuras e chicórias eram comuns no leito formado
pelo óleo e água de lavagem dos postos Shell e Atlantic – os dois únicos
da Avenida Brasil.
Lembrei de novo da igreja. Foi
demolida nos 90 e virou estacionamento. Também demoliram a Agência de
Rendas, a cadeia pública e outra série de pequenos prédios, casas e
outros patrimônios históricos. A casa em que nasci ainda resiste, aos
pedaços. Cresci nesse espaço, num terreno amplo, cheio de frutas da
estação, de pés descalços e com um calção que minha própria mãe fazia.
Meu mundo era grande. Jogava bolita,
bulico e coral, tive tosse comprida e quase morri quando derramei leite
quente na minha barriga. Passei um bom tempo com pomadas e ungüentos
enrolado em pano e em folhas de bananeira. No terreno de casa se plantava milho, criava-se galinhas e porcos. Toda estação da primavera a
frente se floria de marçanilha que junto com hortelã, marcela,
quebra-pedra, malva, brotos de laranja e de goiaba, mais leite magnésia
formavam a farmácia básica da minha família. Chá de hortelã com leite
magnésia, então era meu favorito para dores de barriga e outros
espasmos.
Tempos atrás, chamei meu filho e pedi
para anotar, quantas tipos de frutas tinha no terreiro de casa. Passou
de 30. Laranjas, mandarinas, uvas, guavirovas, maçãs, peras, goiabas,
abacates, pitangas, figos, mangas, ameixas, pêssegos, mamões, limas.
Minha família tinha dois programas típicos. Invariavelmente, a cada mês,
íamos catar marcela – uma flor amarela de cheiro forte e muito boa para
estômago – nas barrancas do Rio Paraná. A outra, era uma vez por ano,
com toalhas de mesa, íamos no goiabal, atrás de onde hoje está o TTU.
Minha mãe fazia o doce de goiaba, descartando as sementes, e usando a
polpa carnuda, cozinhando com água e açúcar. Era a chimia que se comia
com as galhetas que eu comprava também a uma quadra de casa, na
Panificadora Progresso.
A minha infância teve ainda setra,
mais conhecida como estilingue, pandorga e uma infinidade de pequenos e
grandes bichos, pássaros, insetos, cães, gatos, cigarras e até um
tatu-bola. As aranhas eram enormes, da palma da mão, buçanos e
mandorovás se ocupavam das folhas das hortas e das frutas, queimavam a
pele. O contato com os animais – jaguaras, guaipecas, tucanos,
papagaios, galinhas e gatos – nos dava amor, carinho, sarna, pulgas,
cobreiros, bernes, furúnculos e piques. Não façam isso em casa, mas a
sarna se combatia com um bom banho de sabão e Miticoçan no corpo
molhado. Todo corpo, literalmente, ardia em chamas. Era o remédio. O
pique se extrai com agulha ou faca e se punha cinza quente no buraco do
pé. Outro remédio doído era para pisão no prego. Só melhorava quando se
esquentava umas duas ou três rodelas de cebola e se aplicava no
ferimento. Tiro, queda e muito dor na hora. Berne e furúnculos também se
tiravam com toucinho quente. Eu nunca os tive. Eu tive catapora.

Éramos felizes. Embora minha memória
seja cada vez mais seletiva não posso deixar de lembrar da gastronomia
de casa. Ainda gosto muito de reviro, da chipa, do bori-bori, costela de
porco com mandioca, mas não comia a sopa paraguaia porque é um prato
que tem cebola. Chipa-guazu, tortilha e locro, conheci depois de grande e
também gosto muito. A comida forte paraguaia tem uma explicação. Era um
desejum da manhã. Porque geralmente se comia e se enfrentava o trabalho
na roça, no qual se precisava de muita energia. Do reviro, diz a lenda
que foi invenção dos soldados paraguaios na guerra com o Brasil. No
campo da batalha só se tinha farinha de trigo e banha de porco. Mais
água e para o reviro, foi um passo.
Meus pais tomavam chimarrão, o mate, e
tererê. O chimarrão minha mãe tomava com as comadres. Dona Pichi
deixava o charuto pendurado no portão de casa e Dona Negra tinha uma
criação de Tôfraco, a galinha de Angola. Meu pai eu, gostávamos de
tererê, o mate paraguaio, sempre gelado e com raízes. Refrescante.
Algumas comadres, minha mãe chamava de nha manhera – algo como aquela
qualquer. Aliás, a mãe era mestre numa infinidade de jopara, a mistura
do guarani e português. Nandejara era outra expressão para se referir às
partes intimas das minhas irmãs. A minha família tinha uma lista
extensa de verbetes, de joparas, exclusivos e únicos.
Em casa, a expectativa do ano inteiro
era com as festas de final de ano. Era um mês de festa entre o dia 15
de dezembro e 15 de janeiro. Nessa época, matava-se qualquer quantidade
de galinhas, um porco grande e se bebia guaraná da Antarctica. Do porco,
tinha a carne, a banha, o torresmo e chouriço de sangue. Era uma festa.
Mais gente em casa, galinha assada, galinha ao molho, macarronada e
bolo feito pela Dona Carlota. O aniversário de casamento dos meus pais
era também no dia 25 de dezembro. O bolo era de dois andares, branco, cobertura de um glacê cristalizado e recheio de doce de ameixa, doce de coco. Era uma delícia.
Não lembro muito de presentes de
Natal, nem dos aniversários. Lembro das festas. Um único presente que
lembro, meu pai me deu uma régua de desenhos e minha irmã me tomou. Até
hoje tiro onda dela com isso. Mesmo assim, como a minha mãe me
classificava, eu era o ganjento, o chorão. Filho do meio, entre seis, o
mais doente, o mais isso e mais aquilo. Nem sabe ela o quanto isso
perdurou na vida de um rebelde tardio.
A minha cidade, eu tinha como um mapa
na palma da minha mão. Desde as idas ao açougue, à panificadora, aos
passeios da família aos domingos, a descoberta da escola, primeiro a
Escola Jorge Schimmelpfeng, mais conhecida como Centro, e depois o
Bartolomeu Mitre. Era uma fantástica viagem por muitos caminhos
possíveis até escola. Por vezes passava pelas jaguatiricas presas no
pátio da Polícia Federal (atual Provopar), me fascinava com os cartazes
do Cine Star, estranhava seu Inácio Batista, mascando não sei o que sem
os dentes na boca, e das tentativas de roubar alguma revista no Fumante.

Era uma expiação da vida e quando a
cerração chegava sentia-me como um semideus correndo de braços abertos,
bafejando meu hálito na espessa neblina. Não enxergava um palmo na
frente, mas me via entre nuvens, num paraíso, como poucos entenderiam.
Nem os gritos de mocorongo, piá gadeiudo e jacu me incomodavam. Estava
eu lá, na mais pura abstração.
Algumas palavras
Bolita Cerração Reviro Setra Ganjento
Pandorga Tererê Galheta Tôfraco Manhera Chipa Chipá guazu Retovado
Yvaporoitî Tortilha Nambrena Bodoque Locro Mbeyu Mandorova Buçano
Guavirova Mandarina Manguruju Mandi Bori-bori Piá Gadeia Cururu Cuia
Guaipeca Mocorongo Catapora Jaguara Lambari Pamonha Pixaim Jacu
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Zé Beto Maciel é jornalista em Curitiba
Crônica de um amigo...alma próxima...e a distância ...corpo longe...eu no Oeste, ele no Leste da cidade cinza. Beto...encontrei essa relíquia no site da Guatá...precisei ilustrá-la com a sua ou a minha cara...rsrs! Não sei se "infloi ou contribói" com a rede...mas prefiro continuar sendo a Wilminha "pescadora de ilusoes" Saudades sempre meu amigo!
EsToU: Em Foz
PtD: wilma de outrora com a de amanhã às 06 horas
Crônica de um amigo...alma próxima...e a distância ...corpo longe...eu no Oeste, ele no Leste da cidade cinza. Beto...encontrei essa relíquia no site da Guatá...precisei ilustrá-la com a sua ou a minha cara...rsrs! Não sei se "infloi ou contribói" com a rede...mas prefiro continuar sendo a Wilminha "pescadora de ilusoes" Saudades sempre meu amigo!
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