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¯`*·.¸¸♥ღ°Quem é essa que me olha de tão longe, com olhos que foram meus?(Retrato antigo - Helena Kolody) ¯`*·.¸¸♥ღ° Quem é essa que me vê do lado de lá quando eu dela preciso cá? Quem é essa que está em mim e eu nela em hora sem fim? Quem é essa, quem sou eu?De tanta pressa o vento a levou...Fiquei eu Olho no olho O meu no seu Num retrato antigo Num estar comigo Num olhar só meu. (Janice Persuhn)¯`*·.¸¸♥ღ° De retralho em retalho tiram pedaços de mim de espaço a espaço costuram os vazios de mim de palavra a palavra descobrem eu sou mesmo assim. (Autópsia) ¯`*·.¸¸♥

PrOfeSsOrA WiLma NuNeS RaNgEl

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segunda-feira, 28 de junho de 2021

Uma estrangeira em nossa rua de Milton Hatoum - Conto na íntegra

Uma Estrangeira em nossa rua 



O título do conto: Uma estrangeira em nossa rua, e encontra-se em uma obra literária de nome A cidade ilhada, de Milton Hatoum. 




    No caminho do aeroporto para casa, eu observava os lugares da cidade agora irreconhecível. Quase toda a floresta em torno da área urbana havia degenerado em aglomerações de barracos ou edifícios horrorosos. Em casa, tia Mira me recebeu com entusiasmo e contou uma ou outra novidade que, para mim, já não faziam sentido. Deixei a mala no quarto e quase sem querer perguntei pelos Doherty,

    Nunca mais voltaram, disse tia Mira. O pai ainda passou uns meses aqui, vendeu o bangalô e foi embora. O comprador derrubou o muro, a casa, a acácia. Tudo. 

    Para onde foram? 

    E quem pode saber? 

    Aquela família vivia em outro mundo. 

    Eu tinha acabado de chegar à cidade, e notara com tristeza a ausência da casa azul na nossa rua. Era um bangalô bonito, cercado por um muro de pedras vermelhas que uma trepadeira cobria; no pátio dos fundos uma acácia solitária floria nos meses de chuva e sombreava o quarto das duas irmãs. Agora um monte de escombros enchia o terreno na rua em declive.

    Na varanda de casa, ao olhar as ruínas do bangalô, me lembrei de Lyris, mais alta e também menos arredia que a irmã. O cabelo quase ruivo, o rosto anguloso e os olhos verdes e um pouco puxados embaralhavam traços do pai e da mãe. Só me dei conta dessa beleza estranha e misturada no fim da infância, quando senti alguma coisa terrível e ansiosa parecida com a paixão.

    Lyris devia ter uns dezoito anos, e a irmã era quase da minha idade: quinze. Antonieta nossa vizinha mais escandalosa, as apelidara de bicho-do-mato, porque não iam às festas, não pulavam Carnaval, não se bronzeavam nos balneários nem tinham namorados ou amigos. Andavam sempre juntas, e sempre escoltadas pelo pai: o engenheiro Doherty. Diziam que ele era inglês ou irlandês, e a verdadeira nacionalidade permaneceu um mistério. Eu pensava que Alba, a mãe, fosse amazonense, pois suas feições indígenas eram familiares; Mas a manicure de tia Mira contou que Alba era peruana, e só depois entendi que a língua, e não a nacionalidade, nos define. Lembro que, uma manhã, Alba ralhou com as filhas em um português atrapalhado. Não entendi quase nada, apenas “suas preguiçosas”, palavras pronunciadas no meio de uma frase longa e desastrosa. Às sete da manhã eu via as duas jovens usando o mesmo uniforme: saia plissada azul e blusa branca. Elas entravam no carro do pai, que as levava ao colégio das freiras, a seis quarteirões da nossa rua. O Aero Willys preto voltava ao meio-dia e, sem buzinar, embicava na entrada: a mãe saia do carro para abrir o portão, e as duas filhas, juntas no banco traseiro, se enclausuravam no bangalô, e assim se despediam da nossa rua, do bairro, da cidade.

    Lyris devia ter uns dezoito anos, e a irmã era quase da minha idade: quinze. Antonieta nossa vizinha mais escandalosa, as apelidara de bicho-do-mato, porque não iam às festas, não pulavam Carnaval, não se bronzeavam nos balneários nem tinham namorados ou amigos. Andavam sempre juntas, e sempre escoltadas pelo pai: o engenheiro Doherty. Diziam que ele era inglês ou irlandês, e a verdadeira nacionalidade permaneceu um mistério. Eu pensava que Alba, a mãe, fosse amazonense, pois suas feições indígenas eram familiares; Mas a manicure de tia Mira contou que Alba era peruana, e só depois entendi que a língua, e não a nacionalidade, nos define. Lembro que, uma manhã, Alba ralhou com as filhas em um português atrapalhado. Não entendi quase nada, apenas “suas preguiçosas”, palavras pronunciadas no meio de uma frase longa e desastrosa. Às sete da manhã eu via as duas jovens usando o mesmo uniforme: saia plissada azul e blusa branca. Elas entravam no carro do pai, que as levava ao colégio das freiras, a seis quarteirões da nossa rua. O Aero Willys preto voltava ao meio-dia e, sem buzinar, embicava na entrada: a mãe saia do carro para abrir o portão, e as duas filhas, juntas no banco traseiro, se enclausuravam no bangalô, e assim se despediam da nossa rua, do bairro, da cidade.

    A família Doherty recebia dos vizinhos convites para festas de São João e de aniversário. Nós sempre convidávamos os estrangeiros, e sempre recebíamos um buquê de flores com um bilhete de agradecimento ou parabéns, assinado pelos pais e suas filhas. Eu guardava esses bilhetes, gostava de ver a assinatura de Lyris, e pensava que o nome dela, escrito com letras inclinadas, quase deitadas, era um presente para mim. Os Doherty nunca importunavam ninguém, eram afáveis e muito discretos. Tanta discrição era insuportável, e me irritava. 

        São loucos, vivem socados dentro de casa, dizia Antonieta. O que eles fazem escondidos? 

    Quando fiz quatorze anos e ingressei no ginásio, podei galhos e folhas do jambeiro do quintal, abrindo um clarão na copa espessa da árvore. Então podia ver o pátio onde a mãe estendia a roupa molhada das filhas; aos domingos, cinco da tarde, via a família ao redor de uma mesa sob a acácia; conversavam, riam, tomavam chá e comiam pupunha cozida com manteiga. A merenda dos Doherty me dava água na boca. Aos sábados, podia ver a janela do quarto das irmãs. A cama de Lyris aparecia inteira, a da irmã, só a metade; durante a semana, as duas moças raramente ficavam no quarto, pois estudavam no escritório da fachada oeste, inacessível ao meu olhar. Alba fechava a janela no fim da tarde, de modo que eu nunca as via a noite. Quando trovejava, a casa toda ficava escura e fechada, diziam que os Doherty tinham medo de torós amazônicos. Antonieta, língua solta, espalhava para vizinhança que Alba acendia velas e rezava durante o aguaceiro, enquanto o engenheiro se trancava com as filhas e as agarrava com volúpia. Diz que até ouvira gritos das duas irmãs, sons mais estridentes que trovoadas, e que nas noites de temporal os Doherty dormiam e acordavam na mesma cama. Não sei se era verdade, Antonieta via o bangalô de outro ângulo, e cada vizinho contava uma história diferente e estranha sobre os Doherty.

    Certa vez, no Carnaval, o bloco do Sujo desceu nossa rua batucando uma marchinha antiga; a banda deu uma parada de uns minutos diante do bangalô, a pedido de Antonieta, “só para ver se os bichos-do-mato saíam da toca”. Vi as duas irmãs dançando e cantando no quarto e, quando o batuque sumiu, continuaram sambando, depois riram abraçadas e Lyris caiu de bruços na cama e ficou balançando as pernas, ao ritmo de um batuque imaginário. Foi o único Carnaval das irmãs Doherty; ou o único que as vi pular e cantar. Naquele ano passei parte dos dias na varanda à espera da moça. Tia Mira ralhava: Vais ser reprovado por causa dela. Desiste de uma vez, ela é quase mulher, e tu és um menino.

     Meu tio, mais tosco e bruto, andava nu pela casa e sentava de pernas abertas e me encarava com um sorriso cínico: Essa Lyris é pra mim, rapaz. Qualquer dia ela larga o pai e vem sentar no meu colo.             Ficava desesperado com as palavras do meu tio, sem saber se ele falava sério ou era só mais uma estocada para me humilhar. Era impossível encontrar Lyris na nossa rua ou em alguma praça ou clube; eu pensava que seu pai tinha medo de alguma coisa na cidade, ou medo de tudo na cidade, pois os Doherty só saíam aos domingos de manhã e eu não sabia, nem tinha como saber, para onde iam. Diz que era um engenheiro exemplar da Companhia de Energia do Amazonas, graças a ele não faltava luz na cidade. Era um exagero, porque sempre faltou luz e até água na minha cidade. Mas devia ser um pai ciumento, pois escondia as filhas como se esconde um par de brilhantes. Como seriam as noites dos Doherty? Que segredos, palavras e gestos havia na intimidade, na quase absoluta reclusão? Lembro que, num fim de tarde, as duas irmãs pararam de recolher a roupa do varal, correram até a garagem e reapareceram no pátio, penduradas no pescoço do pai, que mal beijou a mulher.

    É impossível me aproximar de Lyris, pensei, enlouquecido numa tarde quente de agosto em que a vi deitada na cama, nua, lendo um livro de capa vermelha. As lentes do binóculo traziam para perto de mim o contorno e os relevos do corpo, os cachos de cabelo ruivo e os olhos verdes. Tranquei a porta da varanda e com as mãos suadas me deliciei com a visão do corpo de Lyris. Vez ou outra ela movia a cabeça, arqueava ou contraia o corpo. Foi a primeira moça que vi assim: leitora e nua, no mormaço da minha cidade. Durou quase uma hora. E a lembrança daquele quadro durou o tempo da juventude. Lyris deixou o livro aberto sobre o travesseiro, esfregou os olhos, depois remexeu no cabelo cacheado e saiu bruscamente da cama. O quarto vazio me entristeceu, os gritos de outros vizinhos me irritaram. Foquei o binóculo lá em baixo, nas casas da vila, e vi corpos balançando-se devagar, rostos engelhados, cansados. Todos dormindo. As lentes voltaram para Lyris e agora ela estava sentada no chão, manuseando um objeto escuro, de costas para o meu olhar. Virou a cabeça para a janela, se levantou, e aquela cena nunca mais se repetiu. 

    Meses depois, meu tio me convidou para i ao teatro Amazonas, madame Steinway ia tocar minha sonata preferida. A música e o acaso trazem boas surpresas, ele acrescentou com uma voz insinuante. Usei roupa nova para assistir ao concerto de piano, e aparei a promessa de um bigode, uma penugem rala que escurecia minha boca. Após o concerto conversei um pouco com a pianista, que havia sido minha professora de canto. Ela me convidou para um coquetel no salão nobre do teatro, onde suas alunas iam homenageá-la. Não conhecia ninguém, fiquei observando um quadro de Domenico de Angelis, uma pintura idílica de motivo amazônico, enquanto meu tio bebia e se pavoneava; de vez em quando vinha me dizer que a mãe daquela aluna tinha sido sua namorada e mais de uma mulher no salão era sua amante. Já estava meio bêbado e não dei importância ao que dizia, sua voz de conquistador barato me chateava. Mas foi essa voz que soprou no meu ouvido: Como ela é linda ,e, quando desviei os olhos do quadro De Angelis, dei de cara com a família Doherty. Os pais e as filhas estavam juntos, a beleza de Lyris se destacava do pequeno clã como uma orquídea selvagem. Usava um vestido azul sem mangas e com decote ousado, e um cacho de cabelos da cor do fogo caía em cada ombro nu; os olhos verdes atraíam os que rondavam por ali, ofuscando a presença da irmã. Dois rapazes de uns vinte e cinco anos flertavam com Lyris, e um deles, o mais alto e posudo, roçou a mão no queixo dela e curvou a cabeça sobre o decote. Esse gesto insolente me insultou. O fato de eu ser tão jovem podia selar o meu fracasso? Não tinha a coragem do rapaz, eu era destemido com outros feitos, ousado em outras situações, mas na presença de Lyris era um covarde. Não conseguia sair do lugar, o medo e a timidez me paralisavam; disfarcei a angústia olhando uma figura do quadro, um índio mais corajoso do que eu. Depois de uns minutos, virei o rosto para vê-la, mas não a encontrei. Senti no ombro a mão pesada do meu tio, e levei um susto quando vi Lyris a dois palmos do meu rosto. Assim, tão perto, era ainda mais bonita. Meu tio piscou para mim e se afastou, e por um momento ficamos sozinhos no canto de frente para o grande painel De Angelis. 

    È a primeira vez que a gente se encontra, nem parece que somos vizinhos, ela disse em português, com a maior desenvoltura.

    Na voz um sotaque inglês, mas hoje penso que o espanhol também se intrometia. Deve rir da minha timidez, pensei, sem tirar os olhos do seu rosto. Quis mencionar um poema, mas não conseguia lembrar nada, nem dizer uma palavra. Uma emoção forte me anulou, e só os olhos me obedeceram.

    Por que não vens me visitar? Tu sabes quando estou em casa, ela disse com voz mansa que me deu calafrios. Afastou-se um pouco, olhou para o lado e, de repente, esticou o pescoço e me deu um beijo no canto da boca. Saiu depressa na direção dos pais e da irmã. Fiquei sem saber se era o beijo de uma amizade ou de um namoro insinuado; dormi muitas noites com a lembrança desse beijo, que me dava uma esperança confusa. Pensei em fazer uma serenata para Lyris, mas a serenidade do engenheiro Doherty me intimidava; duas vezes tentei visitá-la, ficava encostado numa parede próxima da casa azul, indeciso derrotado. Duas tentativas desastrosas, e mais uma vez amaldiçoei minha timidez, meu medo.

    Na terceira vez, no meio da tarde de domingo de dezembro, estava decidido: ia bater no portão do bangalô e entrar. A coragem crescia enquanto eu caminhava ao encontro de Lyris. Já alcançara a esquina a nossa rua, quando vi o Aero Willys preto sair da garagem, a mãe no banco da frente, as duas irmãs atrás. O carro desceu a rua e passou devagar perto de mim. Ainda vi o rosto de Lyris, os olhos verdes e um sorriso que eu não soube decifrar. Pôs a cabeça para fora da janela, acenou com as mãos agitadas, os cabelos ruivos e cacheados ondularam com o gesto. Esperei num bar da nossa rua, e uma hora depois o carro entrou na garagem, sem a mãe e suas filhas. A janela do quarto das duas irmãs ficou fechada durante as férias. Em março, quando viajei para longe, o engenheiro Doherty ainda morava sozinho na casa azul. 

    Olhei pela última vez as ruínas da nossa rua e saí da varanda. No meu quarto tentei apagar a lembrança de uma frustração amorosa, um fracasso que não é atributo apenas da juventude. Lyris teria hoje quarenta anos, a idade de tia Mira naquele tempo. Arrumei o quarto, separei e empacotei os livros que ia levar de volta para São Paulo, limpei os livros que ia doar à escola onde havia estudado. De noitinha, minha tia entrou no quarto e perguntou se eu queria suco de jambo. Jambos do nosso quintal, ela disse. Depois tirou do sutiã um envelope que o carteiro deixara na semana passada. Uma carta para ti, ela sorriu. Estranhei os selos da Tailândia e tentei em vão decifrar o nome do remetente. Ia enfiar o envelope no bolso, mas decidi abri-lo. Reconheci a caligrafia e esperei tia Mira sair do quarto. Deitei na cama, li a carta enviada de Bangcoc e fiquei pensando nas palavras de Lyris...


(Fonte: Dia a Dia Educação Zoraide S S- Acesso em 28 jun, 2021)


RESENHA DO CONTO


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